Tico-tico ensina quero-quero

molothrus

(Da cara Berna Toneto, com o giz da memória)

Como aluna sempre fui um quero-quero, a ave mais briguenta do universo. Tive a dádiva de ter ao meu lado um bando de tico-ticos, bichinho altruísta que abre as asas e cafuneia o próximo. E assim, entre pios e penas soltas, eu entendi o que é um professor pelo exemplo.

Filha de pais autodidatas que não frequentaram escola, fui alfabetizada aos quatro anos por minha mãe, que entre tudo me ensinou o abecedário com uma cartilha inusitada: os santinhos que o padre me entregava no final da missa e eu colecionava. De um lado a imagem do santo, do outro um universo de letras que aprendi a identificar. Minha mãe ensinou o verbo doar.

Na Escola Estadual Ary Barroso odiei minha primeira professora, dona Agda. Régua na mão, enérgica, não permitia a fruição (muito menos risadas). Eu tinha menos de cinco anos, era aluna “ouvinte” porque não podia ser matriculada. Sentia-me tratada como uma vassoura encostada no fundo da sala. Apesar de premiada com medalha de primeira da classe, não ganhei parabéns. Na segunda série, depois de uma falsificação pela secretaria da escola, aluna regularmente matriculada encontrei dona Carmem, que estimulava com brincadeiras e que me deu um caderno novo, para “treinar”. Ali percebi que nem todas as mestras eram iguais. Carmem ensinou o verbo alegrar.

Na quinta-série gamei no João, o primeiro homem professor. Era um adulto jovem, abriu as portas da Literatura e um dia, ao perceber o interesse, me pegou pela mão (ai!) e me mostrou uma sala desconhecida. Era a biblioteca (que eu não sabia existir). Apresentou-me a responsável e pediu que ela me liberasse pleno acesso. Aí sim danou-se tudo. João ensinou o verbo pesquisar.

Foi em uma biblioteca, desta vez pública e infantil, que alguém me falou pela primeira vez da missão de ensinar. E não foi uma professora, mas uma “palestrante” (o que seria isso? pensava eu). Aos 11 anos descobri que havia um lugar em que poderia pegar livros emprestados. Semanalmente andava 45 minutos, ida e volta, para me abastecer com três exemplares. Em uma dessas idas, a mulher mais linda, cheirosa e elegante que eu já tinha visto na vida falava a um grupo de adultos. Fiquei escondida atrás de um pilar, com a timidez dos pobres, espiando. Perguntei quem era. A resposta abriu uma janela: a escritora Lygia Fagundes Telles. Ali soube que alguém de carne, osso e pérolas escrevia o que eu lia, e que mulheres escreviam. Lembro uma frase dela, mais ou menos assim: não basta ler, tem de apreender e aprender, e depois de aprender temos de ensinar o que vivemos. Lygia ensinou o verbo compartilhar.

De uma forma muito enviesada, passei a dissociar o professor do prédio da escola. Essa separação se tornou mais forte quando, em 1978, junto com quatro amigos, entramos em um programa de formação para alfabetizadores pelo método Paulo Freire. Envolvidos com o movimento de direitos humanos, nos dispusemos a alfabetizar moradores da favela Jardim Maninos, na zona Norte de São Paulo. Elsa Campos foi nossa mentora, que nos direcionou para o caminho das aulas. Com toda a pretensão e idealismo de alguém com 16 anos, aprendi a vida com aquele povo. A sala de aula era um barraco, em que os “alunos” se sentavam em bancos de plástico branco. Ali não ensinei porque o sentido estava no aprender, com cheiro de lama e lixo que emanava do córrego próximo.

A grandiosidade de um professor se tornou concreta com Paulo Freire, uma pessoa que transpirava saber. O olhar de Paulo Freire era de ternura e gratidão pela vida. A voz suave e ao mesmo tempo potente descongelava certezas. O abraço derretia. Quem melhor definiu isso foi a amiga Maria Stella Graciani: quando Paulo Freire chegava tudo ficava claro. Ele emanava luz.

A primeira vez que vi Paulo Freire foi em junho de 1980, no dia em que ele desembarcou no Brasil, voltando do exílio. Fui com a turma de formação do projeto para a acolhida, no aeroporto de Viracopos, carregando faixas da campanha pela anistia. O peito explodia de ansiedade, por duas razões: conheceria o mestre e, pela primeira vez em meus 18 anos completados naquele mês, pisaria em um aeroporto e veria um avião de perto. A emoção era demasiada, não sabia se espiava as aeronaves subindo e descendo ou se furava o bloqueio para chegar perto do professor Paulo. Decidi pela segunda opção e me dediquei ao momento histórico. Posteriormente, Paulo Freire foi influenciando a aprendiz de educadora, ensinava pelo exemplo, disponibilizava pensamento. Curiosamente estranhava o tratamento de senhor. Como Paulo, ensinou o verbo educar.

Quem também determinou minha vida foi Octávio Ianni, um dos professores afastados da USP pela ditadura. Junto com aqueles mesmos quatro amigos, decidimos estudar a realidade. Depois de uma malsucedida e inexplicável tentativa de grupo de estudos sobre Vietnã, e por iniciativa de um de nós, conseguimos que o professor Octavio Ianni nos desse aulas de sociologia. Impôs condições: seria aos domingos, às 9 da manhã, com responsabilidade. Compromisso firmado, durante um ano tivemos a honra de aprender com um dos mais notáveis sociólogos brasileiros. Ianni nunca faltou, era pontual, rigoroso e de uma generosidade sem tamanho, desvelando o bê-a-bá da realidade brasileira a cinco jovens que muitas vezes compareciam com ressaca. Octávio Ianni ensinou o verbo comprometer.

Depois vieram outros, muitos. Dadivosos, competentes, brigadores, acolhedores, ranzinzas, efusivos, monásticos, dançarinos, seresteiros, camaradas. De cada um, cada uma, sementes e lembranças, inumeráveis. A todos, fica o agradecimento e a frase que Freire ensinou: educação é ato político de amor.


One Comment on “Tico-tico ensina quero-quero”

  1. Liliam Ferreira Manocchi disse:

    Líndissimo contar!!!!


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